Apesar de o filme ter sido veiculado no Brasil como “O Enigma de Kaspar Hauser”, uma tradução mais literal de seu título original seria “Cada homem por si e Deus contra todos.”. O filme abre com uma pequena introdução, após a qual somos informados que um homem desconhecido foi encontrado na praça da cidade de Nuremberg, Alemanha. Ele teria aparentemente 18 anos, sabia poucas palavras e só podia andar com ajuda. O homem segurava um bilhete, onde constava somente seu nome: Kaspar Hauser. Em seguida vemos Kaspar sozinho em um calabouço, grunhindo enquanto se distrai com seu único brinquedo - um cavalo de madeira. Um homem vestido de preto aparece, veste botas em Kaspar, o ajuda a levantar e o “carrega” até a praça. Essa é a primeira vez que Kaspar sai do calabouço em 16 anos. O homem de preto, que pode ser seu pai, coloca Hauser de pé, diz “Espere por mim” e vai embora. Rapidamente pessoas nas casas em volta da praça começam a notar a presença de Kaspar. Quando interrogado, Kaspar é incapaz de responder qualquer pergunta com coerência. Os oficiais da cidade, um policial e um militar são chamados para examiná-lo, enquanto um escriba toma notas do procedimento. Kaspar traz consigo uma carta pedindo que seja aceito no regimento do Capitão, mas ele é claramente incapaz de serviço militar. Uma família o abriga e as crianças começam a ensinar palavras para ele. Alguns não acreditavam plenamente na história de Kaspar, mas após alguns episódios (o da espada e o da chama), a falta de resposta genuína dele os convence. O problema do nosso personagem principal se dá porque, seja lá por quais motivos não explicitados no filme, Kaspar foi banido durante a infancia e a puberdade de qualquer tipo de socialização. Essa socialização pode ser definida como a introdução do indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade e se inicia a partir do momento em que ele imita os papéis desempenhados por seus próximos, e vai evoluindo até o ponto em que ele desempenha um papel útil e reconhecido na comunidade.
Após algum tempo, os oficiais da cidade começam a se preocupar com o custo de manter Kaspar, por isso ele é incorporado à um show de circo. No entanto, ele lidera dois outros membros do show numa fuga e termina sua carreira no circo. Ele é então acolhido por uma ordem religiosa e vira tutelo de Daimer. O último tenta encorajá-lo a confiar nas pessoas, mas Hauser responde que todo homem é um lobo para ele. Graças ao seu tutor, Hauser adquire maiores graus de socialização e aprende a se expressar cada vez melhor. No entanto, ele continua a se surpreender com as convenções e padrões da sociedade. Alguns padres vêem Hauser como um exemplo raro de “homem puro” e por isso crêem ser importante que ele acredite em Deus, provando que a fé é um estado natural para o homem. Hauser não os satisfaz, não conseguindo aderir a fé.
Outra passagem importante é quando ele começa a ter sonhos, apesar desses terem apenas começos e nunca fins. Nesse filme podemos perceber a estreita relação entre língua, pensamento, conhecimento e a própria construção social da realidade. Sobre a última, um dos diálogos entre Kaspar Hauser e seu protetor nos permite saber que no cativeiro ele não era capaz de sonhar e, depois, fora dele, constantemente confundia sonhos e realidade. Até mesmo a diferenciação entre sonhos e realidade é construída por meio da linguagem e das relações.
Um professor de lógica visita Hauser para testar suas habilidades de raciocínio e mais uma vez ele surpreende a todos com uma resposta alternativa e impensada para o problema proposto. Ele também questiona a lógica ao comentar a diferença de tamanho entre o calabouço e a torre. Mais tarde Kaspar é “adotado” por um homem influente da alta sociedade, mas ele não corresponde as expectativas desse homem por não conseguir, mais uma vez, se adaptar facilmente.
Um assassino, que pode ser o homem de preto do início do filme, ataca Hauser em duas ocasiões. Ele se recupera do primeiro ataque, mas o segundo se prova fatal. Uma autopsia prova que seu fígado era grande demais e seu hemisfério cerebral esquerdo (associado a fala) pequeno demais. No entanto, essas observações podem ser falaciosas e apenas inventadas por eles, já que nunca obtiveram uma resposta concreta sobre o por que do comportamento de Kaspar.
Em seu leito de morte Hauser descreve um sonho que teve recentemente. Todos os vivos, conscientes de estar aqui na terra sabem só a história de suas vidas, mas não podem saber nada de sua existência, nem antes de nascer, nem depois de morrer. Ciência, religião e lógica, todas dizem descrever as montanhas que ficam no limiar entre a vida e a morte, mas isso tudo é baseado na imaginação de várias mentes humanas. Ninguém realmente sabe a história da morte ou da pré-vida. A marcha para o norte, no sonho de Hauser, é o envelhecer. Todos devem continuar em direção ao norte apesar de não termos idéia de para onde isso levará. Como um homem excepcional, Kaspar cria um desafio para as assunções de diversas áreas, todos o vêem como um homem criança ou homem no estado puro. Por isso, quando ele rejeita suas crenças, isso parece ameaçar sua validade natural. Longe disso, Hauser é produto de circunstâncias impensáveis (16 anos de solitude). Portanto, essas circunstâncias não providenciam nem afirmação, nem negação dos conhecimentos que ele questiona. A socialização da qual Kaspar foi impedido produz interiorização de normas, valores, estruturas cognitivas e conhecimentos práticos, e seria impossível para ele absorver tais fundamentos depois de adulto, e da maneira esperada pelos membros da sociedade.
As propensões mais naturais de Hauser parecem ser uma bondade inerente e uma apreciação de beleza. Talvez o que esteja sendo sugerido é que das três grandes virtudes, verdade, bondade e beleza, a verdade é a menos importante. Além disso, é muito presente no filme uma aparente crítica à inadequação da sociedade. Apesar disso, nenhuma sugestão de mudança é feita, o espectador é abandonado para pensar uma solução.
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